O grande captador

quinta-feira, 11 de novembro de 2010.

No passado fui forte como um touro, porém hoje, me comparo a um inseto
qualquer, era rápido, um guepardo, hoje uma lesma me ultrapassa, mas não vim aqui
para lamuriar-me do que fui e não sou mais, vim para dizer-lhes a minha história e meu
fatídico desfecho.
Nasci numa pequena vila, Nowhere, literalmente no meio do nada, no inverno só
havia neve, no verão terra rachada, não sabíamos o que era primavera ou outono, os
coletores iam para onde eu não conhecia, e de lá voltavam com o que nos supria, eu
perguntava e não me respondiam.
Até que um dia fui escolhido, um dos guerreiros não voltara e eu no auge dos
meus 16 anos era seu sucessor, levaram-me depois que me despedi de minha mãe, não
havia conhecido meu pai ainda.
Andamos num rumo que eu desconhecia e quando a vila finalmente sumiu de
vista, paramos, deram-me uma bebida a tomei, engoli, amargou-me a boca, não havia
mudado aparentemente, mas sentia diferente, era como se pudesse deslocar montanhas.
Depois seguimos até a margem de uma floresta.
Entramos na selva, as árvores nos engolfavam, senti medo, a cada passo as
folhas estalavam e meu coração palpitava, mal sabia eu que dali a pouco, eu começaria
algo que me nomearia pela eternidade, eu me tornaria o Grande Captador.
Acampamos numa clareira ampla e estranhamente pentagonal, uma frágil lua
minguante lançava sua fraca luz, iluminando o centro da clareira e criando sombras
tenebrosas nas margens, não senti medo. Assim que tudo estava pronto, eles me
disseram o que eu tinha de fazer. Jean que era o mais benevolente de todos me explicou
como minhas habilidades foram despertas, que a bebida havia feito isso, mas não era
apenas tomá-la, isso estava escrito em seu sangue, era algo que passava de geração em
geração, perguntei se meu pai também havia sido um dos nossos, ele me disse que eu
saberia tudo no tempo certo.
Dormi à beira da fogueira, de manhã no outro dia senti um vazio no estômago,
não era fome, era uma coisa diferente, era uma sensação de auto-suficiência. Chermon
me deu um punhal, era amolado e brilhante, dissera-me que era meu só eu poderia
manuseá-lo de agora em diante e ele não me serviria de nada se tentasse usá-lo para algo
além de uma morte limpa e necessária, ele pesaria em minha mão, seria uma tonelada de
aço condensado num pequeno volume, nem mesmo o mais forte dos guerreiros poderia
erguer.
Saímos floresta adentro Chermon me acompanhou, disse-me que hoje era o dia
de coletar vegetais, o dia transcorreu como deveria, ele me disse quais frutas e vegetais
colher e quais não colher, mostrou-me também algumas ervas que eram usadas como
remédios, e antes de tudo isso me deu uma bolsa, por mais que eu tentasse eu não
conseguia a encher, naquele momento descobri o porquê deles chegarem com bolsas tão
pequenas, mas cujo conteúdo nos supria por semanas e às vezes até mesmo meses.
O crepúsculo já despontava, mas eu não estava cansado nem com fome, apesar
de não ter comido nada desde a manhã, mas ele me disse que deveríamos ceiar alguma
coisa, pois era essencial para nos mantermos com toda a energia necessária.
Quando a lua estava alta no céu, Chermon chamou-me para a caçada, nos
dividiríamos em pares novamente, só que dessa vez não iria com ele, e sim com
Gregório, que andava com um arco e uma aljava carregada de flechas afiadíssimas,
parecia que suas flechas eram encantadas, pois não errara o alvo nunca.
Ele me guiou pela selva mostrou-me rastros que os animais deixaram, tanto de
fezes, quanto de passos.
—Sempre mate apenas o necessário, nunca uma fêmea e nunca um filhote, você
saberá distinguir quem é quem—falou com calma.
—Mas eu nunca vi um animal comestível antes, exceto quando ele já está assado
no meu prato.
—Você saberá.
Então entramos floresta adentro, ele se subiu em uma árvore e ficou lá enquanto
fui para trás de um arbusto com meu punhal, um enorme animal com presas enormes e
que soltava um grunhido horrendo. Não sei como ou porque me joguei em cima dele,
mas foi incrível, eu acertei-o com o punhal exatamente no pescoço ele não teve tempo
nem para reagir, Gregório pulou da árvore e em segundo estava atrás de mim chegou ao
ouvido do bicho e falou:
—Que Dieu sauve ton âme—virou-se para mim—Decore essa frase, significa
“Que Deus guarde sua alma”, sempre diga isso ao matar algo, tem que ser uma morte
limpa e necessária.
—Certo, mas como carregaremos isso até o acampamento?
—Simples, puxe uma presa e arraste.
—Não vai me ajudar?
—Você caçou, você carrega.
Puxei-o por uma presa como me foi dito, e era como se fosse uma pluma de tão
leve, pus o corpo inerte nas minhas costas e o levei em direção ao acampamento onde
cada um já nos aguardava, tirando o couro, e fatiando a carne. Gregório se pôs a me
ensinar realizar esses processos, era bem fácil e divertido.
—Hora de voltar— anunciou Jean.
Cada um levou sua caça enrolada em bolsas de couro. Quando o sol estava
raiando saímos à borda da floresta e por mais estranho que parecesse, só passamos um
dia e duas noites na floresta, mas a paisagem antes desértica estava agora coberta por
neve, uma camada bastante grossa, nada típica de um começo de inverno. Vendo minha
cara de espanto explicaram-me que o tempo passava, na nossa vila, de uma forma
diferente da do resto do mundo, era por isso que eles demoravam tanto a voltar.
Ao chegarmos minha mãe abraçou-me ternamente, beijou-me a testa de uma
forma carinhosa, as lágrimas que os olhos dela vertiam escorriam pelas minhas costas
umedecendo levemente minha roupa. Quando enfim me soltou do abraço, seus olhos
pálidos como jade estavam inundados de lágrimas que ela não tentava esconder.
As mulheres da vila pegaram o que trouxemos e foram repartir uma parte entre
todas as famílias e outra parte foi levada para a dispensa comum. Naquela noite, como
sempre havia quando os “Coletores”, era assim que nos chamavam, houve carne de
todos os tipos, vinho suficiente para embebedar cem homens. Passamos duas semanas
do nosso tempo até a próxima coleta.
Continuei coletando por diversas vezes e percebi que a diferença de tempo da
nossa vila para o resto do mundo era aleatória, às vezes uma noite fora do povoado
correspondia a alguns segundos nele, já outras vezes poderiam ser meses, mas até que
um dia quando fomos coletar, vimos que no mundo exterior o tempo tinha passado
rápido demais a floresta estava pequena, se é que se podia chamar aquilo de floresta, os
outros não ligaram, já tinham visto mudanças maiores que apenas uma redução de
tamanho, mas eu podia sentir que havia algo diferente, me separei do grupo e corri em
uma única direção até sair da mata, no meio de um lugar cinza com coisas enormes e
pontudas, depois eu viria, a saber, que eram edifícios, eu em sentia perdido, andei por
entre os prédios, as pessoas se vestiam de forma muito estranha, as mulheres usavam
calças como se fossem homens.
Já à noite, voltei à floresta e não os encontrei mais, me senti sozinho como nunca
havia me sentido. Nunca mais os vi, não faço à mínima ideia de como estão ou se ao
menos ainda estão vivos. Quando percebi que não havia como voltar sozinho, chorei
como nunca havia chorado e como nunca mais voltaria a chorar, ao menos foi isso que
pensei.
Voltei para cidade, só tinha a roupa do corpo e o meu punhal, quando cheguei
num espaço aberto enorme ,com cercas ao redor da grama e bancos, o dia já estava
raiando, me deitei num dos bancos. Quando finalmente consegui dormir um homem alto
e forte, me perguntou se eu era de Nowhere, respondi que sim, disse-me para segui-lo.
Entramos numa casa onde estavam dois sujeitos, ele me explicou que para poder
se sustentar eu devia usar minhas habilidades, pegou meu punhal e o avaliou. Avisoume
que eu o guardasse como recordação, pois a partir de agora não me serviria de nada.
Eu passaria a captar cabeças de foragidos para quem me pagasse melhor, meu
primeiro trabalho foi entregar a cabeça de um policial a um chefe da máfia, pois ele
tinha prendido o filho dele, agora eu tinha uma nova arma, era um tipo moderno de
arco, só que com pequenos tubinhos de metal no lugar de flechas e também era bem
menor e tinha uma forma diferente.
Matei muitos por dinheiro, passei a sentir prazer nisso, eu tinha um apelido “O
grande captador”, pois eu era o mais requisitado e sempre levava a cabeça, dentro de um
saco de couro, para o contratante para assegurar que havia sido a vítima certa.
Mas numa dessas “caçadas”, fui contratado para matar uma moça de 17 anos,
pois o pai dela tinha tirado a vida do filho de um rico magnata, então iria receber na
mesma moeda, ela era linda, tinha cabelos cor de mel e olhos que pareciam bombons
feitos com um chocolate fino, eu esqueci completamente qual era minha missão ali, e
cometi um enorme erro.
Ao invés de decepá-la, puxei-a para junto de mim e sussurrei que deveria me
seguir se quisesse ter alguma chance, então corremos para longe, pegamos um avião, eu
tinha muitas identidades graças ao meu trabalho e também, muitos contatos que eu
poderia usar antes que o que eu fiz ficasse sendo sabido por todos, consegui uma
identidade para ela, passaria a se chamar Mary e eu Steve, fugimos para um país dos
trópicos.
Dias depois soube que tinham descoberto o que eu havia feito, mas não
importava mais, nós estávamos felizes e nos amávamos. Recomeçamos nossas vidas, eu
trabalhando como veterinário numa pequena cidade, junto com a identidade nova
consegui um diploma também. Ela tinha só 17 anos, cursou a faculdade de
contabilidade e tornara-se uma contadora respeitável.
Mas você pode tirar o homem das matanças, mas jamais poderá tirar a matança
do homem. Eu não resistia a essa vida pacata, eu precisa de adrenalina fluindo por meu
sangue, então voltei a matar, não mais por dinheiro, mas apenas pelo prazer. Mary
percebeu a mudança em mim e aos poucos também foi mudando, e eu estava tão imerso
em mim mesmo que não percebi isso, fui afundando cada vez até que eu não podia viver
sem adrenalina.
Quando cheguei em casa com a roupa suja de sangue, e uma faca pingando esse
fluido vital, ela não pode mais negar para si própria, foi a gota final. Ela correu
desesperada e se trancou no quarto, passei à noite toda implorando que abrisse para que
eu pudesse me explicar, até que caí no sono.
Ao acordar não restava mais nada dela, nem ao menos uma única peça de roupa,
só havia um bilhete que dizia que eu não ter a matado foi o meu erro, teria sido menos
doloroso para os dois, eu não podia resistir a isso. Então peguei meu punhal que há
muito tempo não usava. “Dieu sauve mon âme”, foram as últimas frases pronunciadas
por meus lábios, enfiei o punhal em minha garganta, não senti dor, não soltei nenhum
gemido.Enfim você se torna apenas uma lembrança desfocada no coração de quem te
amou um dia, assim como eu me tornei.

1 comentários:

Darlan Silva disse...

Seus contos são otimos Jo !

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