A última dança

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010.

        Na época da segunda guerra, ser judeu numa Alemanha hitlerista não era nada fácil, mas eu e meu pai conseguimos identidades alemãs com um antigo amigo dele que também era meu padrinho. Havíamos perdido tudo e vivíamos de favor em sua casa. Eu me chamava Helene e meu pai Alarick. Ele jardinava e raramente saía para que não fosse reconhecido como judeu, eu passava a manhã na escola ouvindo barbáries sobre meu povo, minha mãe era alemã e assim sendo eu era uma “mestiça”, coisa inaceitável naquele período. Como ela eu tinha cabelos finos e loiros e olhos tão azuis que meu pai os comparava a pequenas safiras.
         Eu cresci assim, com o medo de ser descoberta a qualquer momento e perder o pouco que me restara. A única coisa que confortara minha infância foram as histórias maravilhosas de meu pai onde quase sempre havia as princesas que esperavam pacientemente por seu príncipes para serem levadas na garupa de cavalos brancos até belos castelos.
Eu esperei muito pelo meu príncipe, mas ele não veio, ao menos não como eu esperava. Resolvi sair, eu não merecia viver trancafiada, com medo de que batessem a minha porta e me levassem para um dos campos. Se fosse pra perecer, eu pereceria lutando. Encontrei um emprego como secretária de um dos generais. ele era um nojento, mas na situação em que eu estava não dava para escolher o patrão.
         Eu trabalhava a manhã e a tarde. não era muito cansativo, eu só levava documentos para cima e para baixo, era muitos papeis. Até que um dia recebi um documento que contabilizava quantos haviam sido mortos no campo de Dachau naquele ano de 1942 que mal terminar. Eram mais de 2400 mortos! Eu fiquei zonza ao ver os números e um soldado que estava próximo evitou minha queda. Eu pedi para ir para casa.
Eu sabia que vários do meu povo morriam em campos como o de Dachau, mas saber o número exato era aterrador. Quando cheguei em casa não agüentei corri para meus aposentos — nada luxuosos por sinal — e chorei como nunca havia chorado.
         No outro dia eu estava restabelecida e quando cheguei ao escritório encontrei o mesmo soldado que me ajudara no dia anterior. Seu nome era Erich, ele era alto, e tinha cabelos castanhos — não tão comuns naquela época — olhos verdes da cor de esmeraldas, ele era alto. Ele perguntou-me se eu havia melhorado e quis saber o motivo da súbita crise. Eu menti. Disse que eu havia tido uma vertigem, e que às vezes acontecia isso comigo.
Os dias se passaram e eu continuei a vê-lo. Esporadicamente falávamos sobre alguns assuntos leves, e essas conversas foram ficando cada vez mais freqüentes. Até que um dia ele me convidou para um jantar informal, num dos restaurantes das redondezas.
         No mesmo dia quando cheguei em casa fui pedir conselhos a meu pai, em quem a idade já havia começado a deixar suas marcas. Ele me disse que era apenas um jantar, se eu me interessasse por ele fosse se não o dispensasse.
         Aceitei prontamente o convite no outro dia e iríamos a um fino restaurante daqui de Munique. O jantar correu na mais perfeita harmonia e ele me fez um pedido deveras inesperado. Ele me pediu em namoro.
Fomos levando esse namoro, até que chegou a um ponto crucial em que ele queria conhecer o meu pai. Alariki não tinha tantas características judias, meu avô era alemão, as únicas coisas que deixavam claro a ascendência dele eram seus olhos escuros, seus grossos cabelos escuros, alguns traços não tão marcantes. Apenas um observador muito atento repararia.
         Ele não reparou. Gostou muito do meu pai e pra minha completa surpresa pediu-me em casamento. Alarik consentiu e eu aceitei. Marcamos a data e começamos os preparativos.
Mas havia um problema. Eu tinha de dizer a ele sobre minha origem e armei um plano para isso. Iria com uma arma e contaria tudo e se ele dissesse que não se importava, e eu acreditasse nele, continuaríamos o casamento. Ou então eu o mataria lá mesmo, por mais que me doesse ter de fazer isso. Eu não poderia por em risco a minha vida ou a do meu pai, ele não tinha mais forças para enfrentar um campo.
Assim fiz. Contei-lhe tudo e ele confidenciou-me que havia percebido desde o início que meu pai era judeu, mas não me contara nada para que eu não ficasse preocupada.
          Ele era de família rica. Entrou para o exército acreditando que poderia melhorar a Alemanha, mas quando chegou lá viu que não era bem assim. Eles torturavam pessoas inocentes, apenas por que precisavam culpar alguém. Então quem eram os mais fracos? A minoria. Os judeus. Então foi simples: culpem-nos. Mas ele não podia mais sair, uma vez dentro sempre dentro.
Planejamos fugir para Suíça, e depois partir para os Estados Unidos ou algum país dos trópicos, onde eu e meu pai pudéssemos viver sem medo de sermos descobertos.
          O casamento estava marcado, mas um mês antes haveria uma festa para que a família dele me apresentasse a seus amigos. Eu estava nervosa, pois meu pai não iria, não podíamos nos arriscar tanto. Ele já iria ao casamento, meu padrinho me acompanharia na festa. Inventamos uma desculpa de que meu pai não estava se sentindo bem.
A festa corria as mil maravilhas. Eu e ele circulávamos entre as mesas e resolvemos dançar. Dançamos diversas músicas juntos. Nossos corpos estavam em uma sintonia tão afinada que chegava a impressionar. Éramos realmente feitos um para o outro. Não queria que aquela dança acabasse nunca.
         Mas não foi possível. O alarme anti-bombardeio soou e houve desespero. Vimos bolas incandescentes de fogo cortando o céu em direção a terra e onde elas batiam tudo ficava em ruínas. Saímos daquele prédio, alvoroçados, não olhei para trás corri para o mais longe que pude em meio à multidão apavorada. Escondi-me num beco, até que tudo acabasse. Os alarmes soaram avisando que poderíamos voltar e quando saí de meu esconderijo vi tristeza e desolação. O prédio onde havia sido a festa estava completamente destruído e foi então me dei conta de que Erich não estava comigo. O que havia acontecido com ele?
        Saí louca pelas ruas arrasadas de Munique, gritando seu nome para quem quisesse e quem não quisesse ouvir. Achei sua mãe e seu pai mortos embaixo de uma viga, nas proximidades do salão, mas também achei meu padrinho que me deu dinheiro para que eu saísse urgentemente dali e recomeçasse minha vida. Eu recusei a princípio. Eu não sairia sem Erich. Ele me disse que viu uma das colunas o atingir, ele não conseguira sair do salão. Eu quase sucumbi aquela informação e ele vendo que eu não agüentaria por muito tempo entregou-me um passaporte na minha mão e uma boa quantia de dinheiro. Disse-me para fugira dali o quanto antes. Aceitei pois não havia mais nada para mim ali.
       Peguei um trem na única estação que restara na cidade. Fui para suíça e de lá fui para os Estados Unidos onde consegui emprego. Astolph, o homem que me criou junto ao meu pai, me mandava correspondências com freqüência. Quando o Eixo venceu a Alemanha ele me convidou para voltar, mas eu não suportaria rever todos aqueles lugares onde um dia fui feliz com Erich.
Muitos anos depois, eu já estava com meus quarenta e cinco anos, recebi uma carta escrita pro Astolph em seu leito de morte. Ele me disse que Erich não estava morto. Ele havia dito aquela mentira para que eu saísse de lá o mais rápido possível. Na carta constava o endereço de Erich, pois ele também havia vindo para os Estados Unidos e morava em Los Angeles. Eu tinha de ir vê-lo! Havia sofrido muito por ter achado que o perdi. Comprei bilhetes de San Francisco para LA. Estava ansiosa, mas eu o encontraria nem que eu tivesse de acampar em sua porta.
      Cheguei de frente à porta. Respirei fundo e toquei a campainha. Ele abriu ficou estupefato a me ver parada em sua frente. Nenhum de nós conseguia falar nada, apenas nos envolvemos num abraço apertado. Ele pôs uma música e começamos a dançar e como na primeira vez que dançamos juntos, eu não queria que aquele momento acabasse nunca.
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